A questão LGBT em Angola

Li algures, há poucos dias, e alhures, num jornal angolano, uma entrevista do representante de uma associação LGBT angolana – a Íris – muito sóbria e corajosa, corroborando a dificuldade em ser-se gay em Angola, por comparação com Portugal, por exemplo, mas não se escudando no discurso fácil da vitimização e da auto-comiseração em grandiloquentes lamurias.

Por Brandão de Pinho

Teve sempre uma postura adequada, realista e não deplorava o panorama angolano face à questão LGBT, tendo em conta, segundo ele, que em África (por vários motivos desde tradicionais a religiosos) há países bem piores; e que mais difícil do que ser gay será ser-se transexual; e ainda que, sendo uma ou outra coisa, em Luanda por comparação com o norte, sobretudo Cabinda, a situação é muito mais favorável para a comunidade que representa. O facto do governo de JLo ter produzido legislação em relação à temática da homossexualidade foi também um ponto positivo que o activista acrescentou.

Está dado o mote e a grande questão que se coloca mas que é politicamente incorrecta é apenas esta: -o que os ocidentais têm a mais em direitos e regalias na mesma proporção têm os outros países a menos.

Angola estará no meio destes 2 mundos?

Há pessoas liberais, humanistas e quiçá, de veia revolucionária e por essa razão com uma tendência natural em colocar-se do lado dos mais fracos e oprimidos, dos mais desprotegidos e das minorias, mas que por questões de honestidade intelectual e imperativos morais, são obrigadas a concluir que há limites que por vezes são ultrapassados. E esses limites são facilmente perceptíveis pois são os do bom senso e da razoabilidade.

Basicamente, essas pessoas, ainda que simpatizantes da causa, com alguma tristeza e desilusão entendem que o “lobby” LGBT ocidental passou das marcas, por exemplo – e para não se abordar outros aspectos – na forma como vem exibindo crianças à – usando a terminologia dos conservadores – depravação e devassidão, em idades demasiados prematuras (opinião similar existiria em relação aos heterossexuais que fizessem o mesmo) e na forma como demasiado precocemente expõem crianças a temas como identidade de género (atenção que biologicamente há casos, raros, de genitália errada no corpo com algo de errado e serão necessários os tratamentos hormonais e cirúrgicos o quanto antes de acordo com a opinião dos médicos e pais); orientação sexual; participação nas paradas e desfiles -muitas vezes de natureza como que carnavalesca – do movimento, já usuais; na forma como não é respeitada a reserva de intimidade a que todas as crianças têm direito; e, lexicologia e semântica sexuais para as quais há idades próprias, creio eu e crêem essas pessoas.

Por falar em idades próprias para certos assuntos lembro-me perfeitamente de que quando frequentava o 8.º ano do liceu -como erradamente apelidávamos a escola – de ouvir dois repetentes a proferir do alto dos seus pedestais de homens vividos, um palavrão (os seres humanos sabem intuitivamente quando se trata de uma palavrinha ou de um palavrão) que jamais os meus puros e angélicos ouvidos haviam escutado e não eram as palavras, ou melhor palavrões, começados por “f”, “c” ou “p”.

Só deslindei o mistério semanas mais tarde após ardilosas, incessantes e tenazes investidas para que os honaribilíssimos colegas nos esclarecessem (não era o único curioso) o significado desse novo vocábulo que mais não era do que a forma mais comum de designar o “fellatio” – pelo menos em Portugal e creio que também em Angola mas certamente não no Brasil -.

Nesse tempo era tão cândido e singelo e porque não admiti-lo, simplório, nas questões da sexualidade e da fina joalharia que só anos mais tarde percebi que os alfinetes-de-peito que certas senhoras usam tinham uma palavra -mais na língua oral é certo- sinónima que era homónima do “fellatio”.

Quando me explicaram -com certeza de forma rude, grotesca e nada pedagógica – o significado meio distorcido e deturpado da palavra, não deixei de sentir um certo choque, e mentalmente, tomei a decisão de obter informações sobre estes assuntos – que pressentia intimamente reservados a algo que tinha constrangimentos quer culturais quer viscerais e naturais tais, cuja apreensão exigiria modos mais urbanos e didácticos e sobretudo oportunos- vagamente relacionados com a sexualidade, ciclo reprodutor, consequências e cuidados a ter… enfim, anatomia, fisiologia e endocrinologia, através de linguagem científica ou – num tom mais informal – através de pessoas mais velhas ou mais experientes, mas não tão brutas.

Tudo bem que estávamos nos finais dos anos 80, numa comunidade rural e do interior em que só havia um canal de televisão que funcionava uma dúzia de horas por dia, se tanto, e claro, sem concorrência, a instituição que o tutelava – a RTP – não parecia descortinar necessidade de evoluir enquanto o mundo entrava numa espiral alucinante de mudança.

A falta de concorrência e o monopólio fazem isto e naquele tempo, em Portugal, ainda havia muita coisa para privatizar e muitas empresas e instituições a criar, que concorressem umas com as outras, para aumento da qualidade, diminuição dos preços e desenvolvimento do país.

Basicamente tratava-se de algo vagamente parecido com o sistema oligarca implementado em Angola e que é a cultura vigente, nos mais diversos negócios e actividades, transversalmente à sociedade e economia, acabando por beneficiar uma minoria da cúpula emepeliana e das altas patentes militares (que às vezes parece que têm mais poder que o próprio Lourenço) o que por si só justifica o atraso gigantesco da nação.

Não que demasiada concorrência não faça diminuir a qualidade -e reportando-me ao caso das televisões- e não acarrete aspectos perniciosos com espectáculos degradantes, infames e reveladores de tamanha ignorância que muito sinceramente assustam, na medida em que as TV’s comerciais – que muito naturalmente visam o lucro – transmitem os programas que têm mais audiências para poderem passar mais publicidade: -o seu único ganha-pão; o que significa que os programas são o reflexo das pessoas que os vêm e das que não os vêm, de certa forma, encarando a sociedade como um todo.

A única solução que tive, então, para não incorrer em situações embaraçosas e constrangedoras, encontrei-a nos livros. De facto tinha alguma coisa em casa de natureza, por ventura, talvez demasiado ousada e desadequada – se os meus pais soubessem exactamente o conteúdo e que eu consultava esses livros talvez não se me tivesse sido dada a oportunidade de os ler – se bem que em abono da verdade, o meu pai, numa tarde de Verão em que languidamente eu o ajudava, segurando nalgum ferro enquanto ele o soldaria, rebarbaria ou cortava (seria mais romântico se estivesse na forja alimentada por um poderosos fole a martelar e dar forma ao ferro, mas esses eram momentos raros) vendo em meus modos e face, a personificação agonizante do aborrecimento, que à vezes confundia-se com preguiça – que não era tolerável naqueles tempos – deu-me para ler, o livro “Papillon”, sobejamente conhecido ao tempo e uma espécie de best-seller. Passados 3 dias já tinha começado a ler a sequela, chamada creio que, “O Banco”. Nesses livros obtive grande parte da minha formação sexual teórica em todas as suas dinâmicas e múltiplos aspectos e se tivesse de definir alguns marcos importantes na minha vida, esse episódio (do meu pai me mandar ler os livros, libertando-me do trabalho) seria um, até porque a partir daí não confiei senão na literatura para me ir esclarecendo, não só no sentido de pesquisas específicas mas também na aleatoriedade e erudição que autores -mesmo os mais insuspeitos- deixavam escapar entre linhas, até porque a sexualidade é uma componente inexorável -ainda que pudica- da vida das pessoas, não podendo deixar de ser reflectida nas suas páginas, sem que se seja propriamente um Henry Miller ou um Marquês de Sade.

Posto isto amigo leitor, vou-vos contar 2 incidentes engraçados e curiosos e de que me lembro perfeitamente, decorridos no espaço de uma semana, mais ou menos, meio anos depois do incidente com os tais colegas mais velhos, incidentes esses que retratam de certa forma a relação da aprendizagem da sexualidade com a idade.

Num deles, numa aula de História, a professora – que nesse dia não me entregou um teste com classificação máxima, por causa de 2 parêntesis no meio dos quais enunciei os alimentos que comiam os neandertais e que dessa forma, de acordo com ela, secundarizavam esse aspecto que a pobre alma, apesar de menos culpada que o próprio sistema, achava que havia uma linha recta evolutiva desde os australopitecos, passando pelos neandertais até ao homo sapiens, entre outras coisas, que mais tarde vim a saber erradas – dizia, aproveitando o tema dos homo sapiens e com aquela brejeirice típica daquelas mulheres infelizes e insatisfeitas com o matrimónio -sem que nada pudessem fazer a não ser fazer de conta que não sabiam nem viam nada- tentou apimentar um pouco a sua vida à boleia dos seus alunos, introduzindo na aula a palavra homossexual.

Tudo bem que o prefixo “homo” possa ter essa duplicidade de significados que tanto pode remeter para “homem” como para “mesmo”, facto que ela, suponho, desconhecia em absoluto. Aliás duvido que soubesse sequer o que era um prefixo.

Dessa forma as antenas da turma e a excitação na aula foram sendo crescentes e enquanto toda a gente opinava excitadamente e já em pleno clímax um colega – que eu tinha como amigo, companheiro e cúmplice – a dada altura fez o paralelismo com as “mulheres sexuais”, provavelmente aglutinando essas duas palavras numa só, pois não havendo a cultura do ensino das línguas clássicas, esse silogismo poderia ser aceitável, se bem que a mim me causou um pouco de antipatia, pela ignorância, pelo preconceito e até pela brejeirice com que a professora, ao fim e ao cabo, nos havia contagiado. Nesse momento uma horda de hunos bárbara ululou e urrou em guinchos e estrépitos altissonantes e brados primitivos, apenas pela simples alusão dessa palavra.

No outro incidente, o protagonista foi um -tenho de admitir- incompetente professor de Educação Física – que numas aulas anteriores sobre atletismo, revelou toda essa sua incompetência ao desconhecer a marcha, o heptatlo e o decatlo como disciplinas dessa modalidade desportiva, para além de ignorar que havia os 110 metros barreiras masculinos e não os homólogos 100 metros barreiras femininos – de quem não tinha boa impressão pois ainda na semana anterior tinha-me dado uma valente chapada na cara – injustamente, ao contrário de outros castigos físicos merecidos com que amiúde os professores me prendavam – gabando-se da forma curiosa como a sua mão ficara marcada na minha imberbe face e convidando os meus colegas a verificarem “in loco” o seu feito antes que o fluxo sanguíneo se restabelecesse desaparecendo assim a prova definitiva da sua heróica façanha.

Ora nesse dia os balneários masculinos estavam em obras pelo que esse professor dispensou as raparigas da aula prática de atletismo e instruiu os rapazes que se equipassem no balneário feminino.

É exactamente a partir daí que começam os problemas -talvez porque jogar à bola fosse mais apelativo do que praticar atletismo para alunos e professor- quando um grupo de colegas liderado pelo tal meu amigo do episódio da aula de História, numa torrente de indignação a roçar a fúria, questionou o pedagogo sobre a o facto de haver pensos higiénicos nos caixotes do lixo dos balneários. Quando eu esperava uma atitude autoritária, firme e assertiva da sua parte para desvalorizar tal coisa, ele próprio também se indigna e dá a aula por encerrada.

De certa forma praticámos na mesma educação física, mas jogando futebol com a nossa roupa e calçado normais e sem um necessário banho após essa actividade, tal como num dia normal em que houvesse gazeta, o que era bastante comum.

Ao tempo ainda não tinha total e cabal conhecimento das idiossincrasias fisiológicas femininas e não estava muito certo do que seria e para que serviria isso dos pensos higiénicos. Todavia guardei esse desconhecimento para mim e mais tarde acabei por ir sabendo ao meu ritmo e em altura própria.

Estes 2 incidentes, caricatos na sua singeleza e talvez demasiado inocentes, acabam por demonstrar que certos assuntos não devem ser abordados fora do seu tempo, nem demasiado cedo, nem demasiado tarde e que são sensíveis a tal ponto que todos os cuidados para proteger as crianças serão sempre poucos.

Cada vez é mais precoce o início da actividade sexual dos adolescentes, para não dizer crianças, a que não será alheia a dispersão de meios tecnológicos à disposição das crianças e que dantes não existiam. Nos tempos de agora, gravidezes de adolescentes são comuns, bem como a sensualização e sexualização dos menores em vários aspectos, que se consentem, muitas vezes com a conivência dos pais, em erotizar-se, numa altura em que ainda deveriam brincar ao “esconde-esconde”.

Mas algo que salta à vista é a forma incremental como a comunidade LGBT vem compactuando com esses cenários, aquando, por exemplo, das suas paradas, através da forma como exibem os seus filhos e os expõem. Imagino que mentes mais conservadoras vejam isso como a Sodoma e Gomorra bíblicas dos nossos tempos.

Em Portugal e no resto do mundo ocidental assiste-se a uma pressão para não ferir susceptibilidades daquilo que é considerado politicamente incorrecto – como a identidade de género e orientação sexual – mesmo que falemos de crianças que mal acabaram de deixar as fraldas, numa abordagem o mais serôdia possível e em pé de igualdade com os comportamentos estatisticamente mais comuns e frequentes, como são as relações heterossexuais e a manutenção do género, que foi determinado à nascença.

Se é verdade que eu e muita gente achamos que todas as pessoas têm direito a ser felizes e a realizar plenamente a sua sexualidade e a assumir a sua identidade, e que talvez, a própria Igreja Católica deveria ser mais complacente em relação ao tema, também não deixa de ser verdadeiro que no ocidente, o “lobby” LGBT vem se tornando demasiado poderoso, contraproducentemente, por mais estranho que pareça e em clara oposição ao que se passa em África, sobretudo quando os evangélicos e muçulmanos têm mais influência e poder, criando-se assim uma clivagem que é prejudicial para a causa.

O luso-angolano, Carlos de sua graça, da Íris, aparentou e deu a entender que tem noção disso e sabe que as coisas têm de ser mudadas pouco a pouco, mas na minha opinião erguer a bandeira colorida LGBT em Angola vai ser não só uma tarefa árdua, como vai implicar uma militância total que lhe consumirá todas as energias e forças.

Boa sorte meu caro e parabéns pela enorme coragem e serenidade verdadeiramente admiráveis.

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